Com base nas minhas experiências e compreensão baseada na análise das festas húngaras, checas e gregas, este texto oferece uma visão concisa sobre as categorias estéticas nas pistas de Dark Psytrance. Entendemos por “categoria estética” a impressão afetiva e as sensações que uma obra/manifestação artística faz experimentar ao subconsciente do ser humano em relação ao seu julgamento estético. Alguns exemplos dessas categorias podem ser: bela, sublime, trágica, cômica e grotesca.
As pistas de dança atraem multidões de pessoas, influenciados frequentemente por drogas psicodélicas, que dançam durante a noite (e muitas vezes pela manhã) num ritmo que hoje pode ser considerada o “núcleo duro” do Psytrance. Um DarkPsy de qualidade envolve uma evolução orgânica e o breakdown (aquele momento onde uma seção é deliberadamente “desconstruída” em elementos mínimos e todas as outras partes da música são silenciadas) de camadas de som de alta complexidade, distorcidas e entrelaçadas, com um tempo que ultrapassa as 150 BPM.
A principal preocupação deste gênero parece ser a transgressão contínua de seus próprios limites pervertidos, tanto musical como semanticamente: distorção, reversão, aceleração e destruição de ritmos e camadas de som. O uso de padrões de som ameaçadores e absurdos cria uma oscilação contínua entre horror e humor conferindo sua atmosfera caracteristicamente demente.
Festival Psy-Fi 2016
Quando a jornada numa pista de DarkPsy é acompanhada de uma experiência psicodélica, o fluxo da música cativa o participante e desencadeia uma série de alucinações, que atravessam e obscurecem as categorias da realidade cotidiana, libertando o participante numa zona desconhecida.
Desta forma, a pista de dança gera um excesso de (ir)realidade simulada, de onde surgem diferentes sensibilidades estéticas, segundo os conceitos do Baudrillardian (1988).
Track: Psycovsky
{ Confira a review da visita do Psycovsky em Santa Catarina: Ritual Psycovsky da Green Dark Power }
Para identificar esta estética, tomarei de Lyotard (1991) o que considero meu conceito chave, que oferece uma perspectiva sobre a “categoria estética do sublime”. Na sua discussão, o autor evoca a situação sublime kantiana, na qual Kant define o “sublime” como um objeto absolutamente grande, que ultrapassa as nossas faculdades mentais de representação e por tanto, as colapsa. Por isso, apenas podemos falar de “idéia de razão”.
Neste sentido, como a imaginação humana não fornece uma representação correspondente a esta idéia, se cria um prazer estético indeterminado, que resulta da mistura prazer e dor. O fracasso da representação mental dá origem à dor, que, por sua vez, gera um duplo prazer através de dois atos: 1°) a imaginação visa harmonizar seu objeto com a já explicada idéia da razão; 2°) a impossibilidade das apresentações atua como um sinal do imenso poder das idéias.
O sentimento sublime na arte romântica é chamado de vanguarda. Ambos se ocupam da “apresentação do não representável”. No entanto, enquanto a nostalgia romântica tenta enxergar e encontrar o não representável à distância, as vanguardas se concentram no que é mais próximo, na própria questão do trabalho artístico.
Maya, A União dos Povos 2017 | Fotografia: Lucas Caparroz
Lyotard também lembra os pensamentos de Burke sobre o prazer negativo do deleite. Certos objetos e sensações estão baixo a ameaça de nossa auto-preservação; o sublime nos confronta com o terror de uma imensa paixão espiritual que carrega a ameaça de mais nada acontecer (isto é, a extinção do sistema). O sentimento sublime deriva do alívio que, apesar e dentro desse vazio ameaçador, ainda existe e ocupa um lugar, um lugar que é meramente “aqui” e “agora”.
A pista de DarkPsy está preocupada com uma problemática semelhante (a ameaça da dissolução do sistema mental), situa o destinatário em uma posição diferente: não é “aqui “, senão “lá”.
Psybu 2016 | Fotografia: Camaleões da Fotografia
Se a situação sublime afeta ao confronto com o oceano infinito que envolve e ameaça a nossa ilha de existência, então a pista de dança jogará o assunto nessas ondas.
Através deste processo, não é abolida a capacidade de representação, enquanto os atos de conceituação desenharam as subseqüentes ilhas de interpretação, repetidamente dissolvidas por ondas (musicais) dementes.
A pista congela e expande o momento de entrar na zona do proibido/inacessível. No momento seguinte, ou imediatamente após cruzar a fronteira, a proibição se dissolve e o desconhecido se torna parte do sistema.
Lost Paradise 2017 | Fotografia: C a m p a n e l l i
A tentativa impossível da pista de dança visa experimentar a imensidão de diversidade (“lá”), sem transferi-la “aqui” (sem integrá-la ao Ser, ou seja, dissolvendo-a ou compreendendo-a). Seu objetivo é ser tão ambígua e “afastada” das categorias da realidade quanto possível.
Chegando nesse ponto, sabemos que as festas de Psytrance geralmente são cheias de decorações incomuns e arte visual fantástico ou bizarro.
Nature, The Dark Concept 2016 | Fotografia: Mushpic
Pulsar Festival 2017 | Fotografia: Lucas Caparroz
Além disso, às vezes os próprios espectadores utilizam trajes ou símbolos especiais, como motivos de ficção científica ou alienígenas, aumentando ainda mais a experiência psicodélica dos participantes.
Modem Festival 2017 | Fotografia: GemeosVB Fotgrafia
Psybu 2016 | Fotografia: Utopia
Tanto a experiência sublime quanto a escuridão se aproximam à fronteira entre omundo e o não-mundo (ou seja, o sistema e a sua dissolução, o articulado e o não articulado, o finito e o infinito).
No entanto, suas perspectivas estão invertidas.
O sublime concebe sua entidade “não apresentável” dentro do sistema e se conceitualiza na forma de uma idéia de razão, como já foi explicado. Essa própria ideia ocupa um lugar na estrutura do sistema mental.
A pista de dança inverte a situação sublime tentando explorar a fronteira desde o exterior, desde um espaço impossível onde todo significado é inconcebível (incluindo o significado da própria experiência) e isso vira uma quebra semântica.
O espetáculo pode ser considerado como a inversão do sublime da vanguarda, porque o seu obscuro objeto de desejo não reside nas grandes distâncias do pensamento romântico, mas sim nas proximidades, na matéria-prima da pista de dança. Forma-se assim um “caldo infernal” composto pelo estranho ambiente musical e visual (uma interação de tecnologia e natureza), o público interativo e frequentemente, drogas piscodélicas.
Nas pistas de dança ideais, os participantes, muitos sob a influência de psicodélicos, não conseguem fazer mais nada além de dançar com movimentos “torcidos” e fora-do-mundo, completamente extasiados com a música.
Gaia Connection 2016 | Fotografia: Lucas Caparroz
Os mecanismos de trabalho particulares dos psicodélicos na mente de cada um asseguram que cada receptor adquira uma perspectiva diferente (o que os darktrances chaman de “alienígena“), sendo o único ponto unificador o desconhecimento comum do que exatamente está acontecendo.
A pista de dança demente simula uma Torre de Babel (construção simbolica do Antigo Testamento para alcançar os deuses) modificada, instando para a dissolução do Ideal platônico. Aproveita essa entropia e continua crescendo ou se desenvolvendo como uma estrutura orgânica.
Modem Festival 2017 | Fotografia: GemeosVB Fotografia
Em contraste com o já comentado sublime kantiano, sem forma, a sublimidade invertida da experiência da pista de dança surge dos constantes tumultos, turbilhões e, de forma grotesca, da transgressão reflexiva das formas.
A festa em última instância, gera um sistema que artificialmente simula ou expressa a falta de regras o que é incorporado na própria estrutura da pista de dança.
A entropia desta estrutura é garantida tanto pela natureza imprevisível da viagem psicodélica como pelo ambiente oscuro da festa que promove o despaego “deste mundo”.
O ambiente psicodélico ideal transfere o participante para um lugar desconhecido, como um planeta alienígena, através da simulação da dissolução ou da evasão do sistema.
Modem Festival 2017 | Gemeos VB Fotografia
A categoria estética desencadeada neste processo é a de um sublime invertido. Uma oposição com o sublime já era característica da estética do grotesco (Bakhtin, 1968), uma estética que também entrou no Psytrance.
Como dissemos, o sentimento sublime surge do fracasso de representar uma entidade concebível de proporções infinitas; a pista de dança Dark Psy tenta expressar algo que é inconcebível ou não articulado no sistema. Enquanto o alívio sublime é desencadeado pelo fato de que algo acontece apesar de tudo, na pista de dança nada acontece, ou mesmo: tudo o que não é tangível acontece.
Dupla argentina Megalopsy atuando no Psycrowdelica Festival, Alemanha, 2009.
Bakhtin, Mikhail. 1968. Rabelais and His World. Bloomington: Indiana University Press.
Baudrillard, Jean. 1988. “Simulacra and Simulation”. In Mark Poster (ed), Selected Writings, pp. 166-184. Palo Alto: Stanford University Press.
Lyotard, Jean-Francois. 1991. The Inhuman. Reflections on Time. Palo Alto: Stanford University Press.
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Versão interpretada e adaptada para o portugês,
baseada no texto
The Inverted Sublimity of the Dark Psytrance Dance Floor
(Jornal of Electronic Dance Music Culture)
de Botond Vitos (antropólogo cultural, Universidade ELTE, Budapest, Hungría).