Psytance: a música da nova contracultura

Goa viu tudo. Liberado do dominio português em 1961, restava só uma pequena aldeia.  Um paraíso virgem com exuberantes palmeiras verdes, campos abertos, praias serenas, estruturas pitorescas e um pôr-do-sol mágico. Pouco sabia que seus próximos invasores seriam de uma natureza bastante diferente.

As crianças de flores do mundo (de “flower child”, um sinônimo para hippie) estavam  em um caminho comum pelo Oriente Médio agora conhecido como o “caminho do hippie”. É triste saber que isso não possível neste momento.  “Te vejo em Goa para o Natal”-  falavam na estrada.

Os habitantes locais eram primitivos, ficavam chocados ao ver corpos nus e de cores diferentes bricando na praia. Eles trouxeram esse ambiente para a joven e independente vila de Goa.

Percebendo a demanda dos recém-chegados, começaram a florescer as lojas de (masala) chai e restaurantes com peixe ao curry  e arroz. O mercado de pulga sempre popular começou  como um local de comércio e troca entre esses baby boomers (nascidos entre 1943 e 1964), um cenário muito diferente do centro comercial que se tornou hoje.

 /></strong>India, 2017 | Fotografia: <a href=Gemeos VB Fotografia

 />India, 2011 | Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

Sim, devemos nos “adaptar” com o tempo. Na verdade, a atual cultura de barraca na praia que é uma marca registrada, as banda ao vivo nos pubs, bares e restaurantes e muitos outros elementos que definem o Goa moderno, podem ser creditados aos nossos amigos hippies. Eles foram os primeiros a colocar Goa no mapa para qualquer tipo de turismo.

É muito triste que as autoridades apenas ataquem os poucos aspectos negativos desta cultura. Goa criou um novo santuário para uma coleção de jovens hedonistas de mente aberta e  pensamento diferentes.

 />Freqs Of Nature Festival 2016 , Alemanha | Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

 />Ozora Festival 2014, Hungria| Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

No entanto, o ritual mais singular desenvolvido por esta tribo, eram as festas de lua cheia. O cenário em Goa era ideal, pois nem sempre teve eletricidade, especialmente nas áreas de Anjuna e além. Mesmoa gora, os farois laranjas nas ruas iluminam pouco o caminho.
Começava com jams acústicos de puro Rock N Roll, com nossos amigos floridos conseguindo de alguma forma trazer sistemas de som Fender, um baixo elétrico e uma guitarra elétrica.

 />Ozora Festival 2014, Hungary | Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

Nessas jam sessions, o mestre do Trance psicodélico, Goa Gil (leia a entrevista com o Mago Mestre aqui!), era uma figura prominente da primeira geração de hippies para entrar no solo indiano. Goa floresceu com o que parecia ser uma amalgamação perfeita de contracultura e espiritualidade.

‘ Goa é um estado de espírito’  é popularmente dito. Muitos desses indivíduos foram expostos a experiências místicas, dentro e ao redor deles. Instâncias de sincronicidade, conexão, unicidade e liberdade.

 />  Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

 />Ozora Festival 2016, Hungary  | Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

Com o tempo, sua música de preferência começou a mudar. Devido aos desenvolvimentos realizados pela Roland no Japão a partir dos anos 80, surgiram muitos mecanismos de sintetizadores analógicos e estações de áudio digital. Isso gerou um boom na música eletrônica em todo o mundo e pessoas  que nem conheciam a linguagem da música, poderiam se tornar agora, de alguma forma, músicas.

Esta música eletrônica teve diferentes vertentes em diferentes partes do mundo. De suas visitas de volta para casa, esses “bandidos de Goa” trouxeram com eles Techno da Alemanha, Acid House da Inglaterra e vários outros estilos musicais eletrônicos. Com o uso de cassetes e misturadores DAT, tornou-se possível juntar essas músicas para criar um efeito de longo prazo, hipnótico e transcendental. Esta mudança se gestava em algum lugar no final dos anos 80.

Por essa altura, a tribo tornou-se maior e a palavra se espalhou por todo o mundo, pois Goa era um centro de rituais de hedonismo, espiritualidade e dança.

 />Antaris Festival, Alemanha | Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

Viajando nos anos 90, Goa Trance nasceu. Na época, era um som muito parecido com Acid house, devido ao uso de sintetizadores similares, mas com uma pegada mais nativa, que só podiam oferecer as festas Goa.

Os músicos na cena se tornaram mais entusiasmados com a conversão de experiências próprias em histórias sonoras e, lentamente, um arsenal de DJs e produtores de Goa Trance começaram a nascer. DJ Laurent e Goa Gil (leia a entrevista com o Mago Mestre aqui!), são as mentes pioneiras por trás do que se tornou o novo som do movimento psicodélico. Junto com outros cérebros musicais, como Green Nuns Of the Revolution, Psykaos, Shiva Joerg e o Infinity Project…a sanidade dos jovens viajantes psicodélicos estava em boas mãos.

As festas eram organizadas de forma diferente naquela época. Ao contrário dos locais fixos que temos hoje, Goa era uma terra livre e aberta. As festas eram configuradas em qualquer lugar e em todos os lugares. Floresta de bambu, Templo de Anjuna, Lago Arambol, as colinas em Anjuna do Sul, Fortaleza de Chapora e eu poderia continuar… Bar é um desses locais que tem existido durante todo o curso deste movimento moderno. Um “ponto de pôr-do-sol” asegurado  dentro dos corações de muitos psiconautas.

 />Canaval em Goa, India | Fotografia: <a href=Gemeos VB Fotografia

Os alto falantes foram criados e  os techno shamans teceram redes de “áudio de consciência” por 13 -24 horas. Os freaks fizeram decorações própias, envolvendo tinta UV, bandeiras com padrões psicodélicos, alienígenas, deidades hindús e desenhos fractais.

As festas duravam dias. Nas minhas conversas com muitos que experimentaram esses tempos afirmam que, embora a música não tenha sido tão intensa quanto hoje, a experiência foi muito mais forte. Me falaram que as pessoas olhavam para o sol da manhã e comemoravam a sobrevivência.

 />Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

Eu acredito que uma cerimônia como esta é sobre quebrar camadas internas. Entramos na noite com o fardo de nossas corridas  diárias. Começamos nossa jornada e desde que ela é nosso destino, começamos a nos perder em um espaço de ritmo comum e êxtase puro.

Lentamente, essas camadas começam a se romper e isso fica um pouco desconfortável, porque você está sendo progressivamente exposto ao seu verdadeiro Eu. Isso fica um pouco mais desconfortável ainda, mas você só precisa relaxar e se entregar. De alguma forma isso está acontecendo através de um groove hipnótico extremamente poderoso. O suor, lavando seu corpo das suas própias impurezas e os músculos, trabalhando durante muitas horas para a desintoxicação final. Ao seu redor, tem espécimes passando por processos semelhantes e isso definitivamente cria um entendimento comum. À medida que o sol da manhã nasce, há expressões de empatia, apreciação e sorrisos de gratidão sendo trocados e você…ainda dança.

 />Festival Mundo de Oz, 2015, Brasil | Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

De alguma forma, eu entendo o aborrecimento da velha escola com o que é a cena hoje, mas está tudo em um caminho ascendente.

Ouvi dizer que houve uma época em que nenhum álcool estava envolvido nos festivais, sem espectadores observando o que acontecia na pista. Tirando alguns problemas ocacionais, ainda hoje, as pessoas vêm no Trance para experimentar magia mais que para ser “cool” e pegar garotas e garotos. Isso,  para mim, prova que ainda tem significado na cena.

 />Antaris Festival 2011, Alemanha| Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

Quando o início dos anos 2000 se aproximou, o Goa Trance começou a viajar pelo mundo. Devido ao calor do verão de Goa e às intensas monções que se seguiram, eles estavam tentando momentos e lugares para fazer as festas.

Para replicar a experiência de Goa internacionalmente, esses freaks foram pisar forte nas terras europeias e em outras partes do mundo. Mais produtores começaram a subir a suas músicas e a trazer seu próprio estilo. Obviamente, isso também foi possível com o desenvolvimento da tecnologia musical e Goa Trance que lentamente tornou-se Psytrance.
Os CDJ já estavam disponíveis e podiam tomar as condições “climáticas” que a Mãe Goa tinha para oferecer. Naturalmente,  não tem comparação  todos os controladores MIDI live e configurações analógicas que vemos hoje.

Full On começou a bombar fora de Israel e Inglaterra, o Dark Psychedelic estava surgindo fora da Europa e da Rússia, o “estilo crepusculo” saindo da África do Sul.
Agora é claro que conseguimos tudo de todos os lugares.

O Psytrance tem outra bela propriedade: é projetado de acordo com a hora do dia, para induzir um certo fluxo de emoções.
Existem sons psicodélicos diurnos divertidos por pessoas como Dickster, Tristan, Laughing Buda e Earthling.

Por outro lado, há sons nocturnos que vêm de artistas como Ajja, Dust, SouthWild, Psymetrixx e Gaspard. Temos uma poderosa música psicodélica escura, proveniente de mestres como Dark Elf, Kindzadza e Darkshire.

A galera de Parvati Records e Disco Valley Records, estão desenvolvendo sons de bestas da floresta. A propósito, o Full On parece ter nascido sob as velhas árvores  de Chapora. Posso ver a relação entre o som e os arredores que o inspiraram.
Existem vários outros estilos como Psygressive e Suomi Saundi que estão ganhando popularidade lentamente.

A lista de talentos é infinita. O estilo de Psytrance está se tornando mais profundo a medida que o tempo avança. As maravilhas tecnológicas levaram os produtores a converter as experiências em suas mentes em obras brilhantes. Há uma infusão de ritmos de várias culturas, idéias melódicas de diferentes locais geográficos e uma bassline  batendo “ao uníssono e à unicidade”.

As batidas por minuto (bpm) variam entre 138 e 170  em diante. Os vários estilos dentro do Psytrance não podem mais ser classificados através da velocidade, porque agora há Dark Psy a 138 bpm e Full On  a 148 bpm. Hoje em dia , depende principalmente da dinâmica e do humor com que esse espaço de silêncio na música é preenchido pelo produtor. Muitos artistas tocam ao vivo instrumentos. Algunos como Highlight Tribe e Peaking Goddess Collective,  reproduzem um som eletrônico com instrumentos orgânicos.

 />Festival PsyBu 2017, Brasil | Fotografia: <a href=Gustavo Merolli

A cena local na pátria Goa também está crescendo, com a explosão de versatilidade e maturidade dos músicos indianos. Agora temos artistas como Starlab, Kerosene Club / Flipknot / Fiber Stomp, Janux e Farebi Jalebi, que se apresentam regularmente em pistas internacionais. Artistas como Groove Addict (Nano Records) estão afiliados com importantes gravadoras no mundo intero. Produtores como Daash, Hydropanic, Chakraview e Aghori Tantrik são alguns dos talentosos músicos “feitos em casa” que hoje estão influenciando muitas mentes mais jovens. Há também um exército local de labels como  Vantara Vichitra e Digital Om que estão fazendo coisas maravilhosas para colocar a Índia no mapa mundial. A quantidade de DJ indianos com gostos de música eclética já não é um problema. Triptone, Nitin, Karan Third Eye, Karran Khanna estão entre os nomes mais proeminentes. Goa ainda é o centro mundial da cultura do Psytrance o com pontos sempre místicos como Shiva Valley, Monkey Valley, Pipers Plateau e Hill Top onde ainda acontecem as melhores experiênciasTrance -n-Dance.

 />Mundo de Oz 2017, Brasil | Fotografia: <a href=Lucas Caparroz

Embora a cultura tenha tido que se adaptar a uma estrutura mais industrial em comparação com os dias de livre flowing dos anos 60-90, ainda é uma nova cultura mundial. As pessoas ainda estão se unindo em diferentes ideologias, experiências místicas e se formando um sentimento de pertença. Esta música, eu acredito, é apenas para aqueles que desejam entender. Não quero juglar, é bom também concordar em discordar.
Citando Bob Dylan… “não se deve criticar o que não podem entender”.

Sendo um estilo novo, está passando por um período de crescimento rápido.
É excitante pensar o que a evolução da mente humana junto com a tecnologia disponível trarão nos próximos anos.

 />Fotografia: <a href=Murilo Ganesh

Psytrance é uma mistura perfeita de física analógica modular, ritmo, groove, melodia e produção de ponta. Há também um outro ponto positivo, que é exclusividade. A multidão vem pela experiência que a música tem para dar. Não é simplesmente uma trilha sonora para cutir uma noite “épica” com os ‘bros’. Não é simplesmente um soundtrack que pode ser usado como uma desculpa para interagir com o sexo oposto.
É preciso muito mais do que isso para realmente curtir o clima do Psytrance.

O Trance psicodélico é o hino de um movimento que ainda está se fazendo forte.

 />Kundalini Festival 2017, Brasil | Fotografia: <a href=Clarice Mallaco

Texto adaptado para o português e ilustrado com imagens de fotógrafos nacionais.
Autor: 
Vir Rattan Chowdhry
Imagem de portada: Braian Williams
Veja o post original na página dos nossos parceiros da Mushroom Magazine.