A energia feminina é uma força sutil e poderosa que se potencializa e intensifica quando mulheres conectam-se. Esse conectar-se não é um conectar qualquer, é uma ligação profunda e ancestral que se dá pelo simples fato de compartilharmos nessa vida esse Ser Mulher e ancorarmos juntas nesse mundo essa força yin, intuitiva e geradora de vida (Todos os seres possuem em si ambas as energias – yin e yang- e devem buscar integrá-las, uma vez que são dois aspectos de uma unidade).
Resgatar esse laço, esse vínculo que já existe mesmo que ainda não tenhamos atentado para ele, é integrar algo que vai além de nós mesmas e que justamente por ser maior que nós, nos amplia, como uma flor que se abre e floresce.
Não faz muito tempo, tive pela primeira vez a experiência única e transformadora de participar de um festival de sagrado feminino produzido por mulheres e para mulheres, o Madre Terra Festival.
Foram cerca de 150 mulheres convivendo, reconectando-se aos mistérios de sua natureza cíclica que se alinha aos ciclos da própria natureza e reassumindo esse vínculo sagrado.
Madre Terra Festival 2017 | Jaqueline Rodrigues
Foi incrivelmente surpreendente presenciar toda a bruxaria – literalmente – que aconteceu durante os três dias de celebração. Foi como se eu descobrisse um segredo antigo sobre eu mesma, mas que não devo guardar.
Vivência no Madre Terra Festival, facilitadora: Karla Amadei | Flavia Machado
De tão marcante que foi a experiência, transbordou para outros campos da minha vida e é por isso que estou aqui, escrevendo sobre a energia feminina dentro do Trance.
Será que a energia feminina tem espaço para circular livremente ou que encontra obstáculos que a impedem de fluir, assim como no resto da cultura na qual estamos inseridos? Será que as mulheres que compõem o movimento Trance estão conscientes desse vínculo ancestral que nos conecta e da sua própria força feminina ou nem tanto? Qual a percepção das mulheres em relação ao Trance, existe um ponto de vista feminino?
Zuvuya Festival | Henrique Marques
Se existe, ele não poderia ser expressado através do olhar de uma só. Precisaria ser uma construção coletiva, um saber artesanal que se fizesse através do entrelace do pensar-sentir-viver de cada uma que quisesse contribuir no tecer dessa compreensão que transpassa o meu ponto de vista e abrange as percepções de diferentes mulheres com diferentes personalidades, histórias e estilos, todas contribuindo com a cultura trance, cada uma a sua maneira e com a sua verdade.
Gypsy Circoloko se apresentando no Kundalini Festival 2016 | Triphotos
Foi então que surgiu a ideia de circular uma pesquisa que abordasse essa temática e, através das respostas que obtivemos, pude observar coisas interessantes. (*No anexo abaixo, vocês podem ler as respostas das participantes na íntegra, dentre elas produtoras, dj’s, fotógrafas, video makers, curadoras, performers, vj’s, etc).
A primeira delas e que gritou por atenção é que, apesar do Trance existir por si só a partir de um principio de Paz, Amor, União e Respeito (PLUR), ele infelizmente carrega resquícios da cultura na qual estamos inseridos e reproduz, como um sistema formado por órgãos adoecidos e que precisam se curar, um padrão machista de desrespeito, exclusão e inclusive violência, como relataram diferentes mulheres.
“O trance faz parte do mundo e o mundo é machista, né? Por mais que tenhamos avançado, ainda é pouco. Essa mentalidade de igualdade de gêneros ainda é um tanto superficial, no que se refere à sociedade.” – Bianca Motta (fotógrafa e videomaker de Interfaces, co-criadora, junto com Wendy Gironi, da websérie Consciência em Transe).
Wendy e Bianca, rodando um capítulo de Consciência em Transe.
“O machismo esta incrustado em nossa cultura de forma geral, e é inevitável que isso vá pra dentro da nossa cena. Pequenos hábitos machistas, como piadinhas de mau gosto até grandes cenas de casais de namorados, onde o cara dá um tapa na cara da mulher no meio do dancefloor” – Janaina Sarzi (diretora executiva e produtora cultural do Pulsar Festival, entre outros festivais no Brasil e Europa).
Pulsar Festival 2017
“Já visualizei homens que se aproveitam de um ‘estado em transe’ onde a mulher está mais aberta e sem tanto controle físico para se chegar, isso é doloroso” – Thaes Arruda (produtora, curadora de intervenções artísticas, projetos e galeria de arte do coletivo BoiKOT).
“Já testemunhei diversas situações em que o homem se achava no direito de fazer o que quisesse no festival ao passo que a namorada tinha que seguir as vontades dele” – Daniele Namorato (escritoria no blog doTrance e Cultura Psicodélica e youtuber no canal Psicodelia & Melodia).
Abraço coletivo. Danni e a suas amigas, Shiva Trance 2015 |Bruno Camargo
É preciso transformar isso e um dos caminhos é “inserir em festivais mais debates sobre questões femininas, de luta, de estudo, de empoderamento, de liberdade“, como sugeriu a fotógrafa e uma das produtoras do Madre Terra Festival, Camilla Albano.
No mesmo sentido, opina Alanita, DJ há mais de 10 anos:
“Acho que podemos utilizar os festivais de forma mais política, para atingir essas pessoas com discussões mais profundas, com debates e palestras, coisas que ainda não acontecem aqui no Brasil. Acho que muitas pessoas que estão nos festivais estão ali porque buscam por outra forma de vida, então acredito que estariam abertas a receber influências positivas desses debates importantíssimos que estão a tona na sociedade atual.”
Dj Alanita
“Temos que incentivar a participação das mulheres nesse meio, construindo juntas. Essa pesquisa é um bom passo, trazer debates, reflexões, ocupar espaços, nos vermos capazes de entender vertentes (sem parecer entender como homens), perceber nossa importância e nosso valor dentro desse movimento. Acredito que qualquer movimentação gera influência para outros espaços, e com toda certeza vai ter influência positiva para além da cultura trance.“ – Thaes Arruda.
Pista do Palco Experimental, BoiKOT/9 | Felipe Correia
Além disso, é vital que exista uma preocupação por parte de todos que amam a cultura psicodélica de forma a cuidar dela e preservá-la, resgatando os seus princípios, compreendendo os seus significados e incorporando realmente o seu sentido. Essa é a única maneira de mantê-la verdadeiramente viva.
Cuidar desse movimento é cuidar das pessoas que o compõem, é entender que estamos aqui para um propósito de amor e evolução e que todos os envolvidos – público e produção – são responsáveis para que isso aconteça. Essa é a verdadeira ampliação de consciência que o Trance tenciona.
Ozora Festival 2012, Hungría | Mati Allendes Medeiros (Psyshoots)
“Na cultura Trance eu sinto mais liberdade das pessoas, mas claro que também aqui temos de tudo, porque nós somos pessoas, nós não somos humanos ideais, mas nós tentamos trazer algo de bom para o mundo. E também nós ajudamos uns aos outros ” (adaptado para o português) – Annes Zia, dj russa das gravadoras Headzone Records, Forestdelic Records e Aerodance Corporation (Russian trance community).
A boa noticia é que, de acordo com as respostas, o padrão machista é relativizado, sendo o movimento trance um espaço de expressão e liberdade, o que diminui os preconceitos e amplia as referências, desconstruindo padrões incrustrados e influenciando positivamente aqueles que com ele entrarem em contato. Afinal, se a parte está no todo, assim como o todo está na parte – conforme nos ensina o Pensamento Complexo de Edgar Morin – então, da mesma forma que a Cultura Trance é influenciada pela cultura machista, a cultura machista também é influenciada pela Cultura Trance!
Outra coisa que saltou aos olhos foi a diferença na quantidade de mulheres envolvidas na construção do cenário eletrônico, independentemente do motivo.
Rocío Moose (Coletivo Djalus), montagem do Pulsar 2017 | Interfaces
As produções, entretanto, são receptivas e abrem espaço para mulheres. Embora a maioria tenha considerado neutro e uma minoria achar desvantagem (diferentes mulheres com diferentes funções em diferentes estados e países), algumas profissionais consideraram, inclusive, que ser mulher representa um diferencial dentro de uma cena predominantemente masculina. Isso quer dizer que, embora composta em sua maioria por homens, a cena tem interesse no trabalho feminino, assim que esse é um bom momento para mulheres começarem ou darem continuidade aos seus trabalhos e, claro, se dedicar bastante a ele.
Bruna Presas, artesã e co-criadora do Espaço Libellula | Marcio Cursino
“Acredito que exista uma balança vantajosa que é pouco explorada pelas mulheres, justamente por haver poucas em evidência. Todas as meninas que se dedicaram e foram em busca do profissionalismo tiveram ótimos resultados. Sinto que falta interesse do público feminino (em comparação ao masculino) em algumas áreas da cena e/ou de buscar mais desafios para seu desenvolvimento” – Kimberly Dreher (fundadora da Label Tríade Trance junto com seu pai, Edson aka. Kaliom, onde exerce diferentes funções)
Aos homens cabe, por amor, respeitar essas profissionais e os seus trabalhos, repensar a forma como as enxergam e as tratam e, pela deusa, parar com as piadinhas. Parece que isso não é nada incomum, embora bastante desnecessário (*Não estamos generalizando, sabemos que existem muitos homens que não fazem esse tipo de coisa).
“Piadinhas machistas ocorrem em todos os âmbitos da sociedade e com certeza já recebi algumas, mas quando subo no palco e toco, elas todas se silenciam rs” – DJ Alanita
“Já perguntaram para mim muitas vezes ‘”O que você faz em cima do palco? É a namorada do DJ?” Porque você não pode ser o DJ? ” – Diane Fernandez (Moon, DJ mexicana de trance há 12 anos).
“Aquele olhar crítico de ‘será que ela sabe o que tá fazendo?’ ou ‘Nossa eu não sabia que você tocava assim’ ou então não escutar uma opinião ou não levar a sério um comentário técnico” – Anônima
“Graças à deusa trabalho em um coletivo que sou respeitada acima de tudo pelo meu profissionalismo e meu potencial. Porém, já vivenciei diversas situações fora do setor de produção onde precisei falar mais de uma vez para ser levada a sério, notando que não tinha um poder de voz igual à de um homem ” -Thaes Arruda
A presença de mulheres é importante para que o movimento trance cresça de maneira harmoniosa e integrada, yin e yang. Para que isso aconteça, precisamos de mais mulheres envolvidas nessa construção.
“Hoje trabalho diretamente com uma margem de 99,9% de homens e sou muito bem reconhecida e respeitada, fora alguns fatos isolados que ocorrem com pessoas que não participam do meu trabalho diário, que se acham no direito de falar besteirinhas ou não cumprir alguma tarefa sob minha ordem. “ -Kimberly Dreher
Clã Aradia na Triade Trance 2016 | Triphotos
A cultura alternativa psicodélica se enriquece ao integrar homens e mulheres, bem como todas as variações de gênero entre eles. Reunir pessoas diferentes é também reunir suas diferentes habilidades e pontos de vista e é somente através da diversidade que conseguiremos construir algo verdadeiramente belo.
Modem Festival 2017, Croácia | Gemeos VB Fotografia
Acolher a energia yin é, portanto, uma ação transformadora e que possibilita a criação de coisas que jamais seriam produzidas caso ela não estivesse presente.
“Percebo grande busca e reconhecimento pelo meu trabalho onde já me falaram algumas vezes que o olhar e as atitudes energéticas femininas é valioso e que isso faz a diferença no resultado final.” – Kimberly Dreher
“Eu acho que não importa quem você é, homem ou mulher, quando se trata de criar algo bonito para esse mundo, e também quando você coloca alguma coisa divina dentro da Cultura Trance. Claro que não tem muitas mulheres na cena trance, mas mulheres também são pessoas como todo mundo, certo?. E sempre é muito lindo quando você vê mulheres artistas, porque mulheres dão para esse mundo amor profundo e todos podem sentir. Além disso, se essa mulher tem muito bom gosto em música, pode ser mais lindo ainda!” (adaptado para o português) – Annes Zia
Outro ponto importante nesse processo de integração com a energia masculina dentro da cena é a integração da própria energia feminina em si, cada mulher consciente do próprio poder, reconhecendo o seu valor intrínseco, cada uma sendo exatamente do jeito que é, única e, por isso mesmo, especial.
Lost Theory Festival 2012, Croácia | Mati Allendes Medeiros (Psyshoots)
O que muitas ainda não sabem, entretanto, é que podemos acessar esse valor mais facilmente através do elo com outras mulheres, é como olhar no espelho e reconhecer fora de nós algo muito familiar.
Kundalini Festival 2017 | Clarice Mallaco
“Partindo do pré suposto que temos liberdade de ser dentro da cena, acredito que as mulheres se sentem mais livres de forma geral. A palavra sororidade não existe nos dicionários. Mas existe em um lugar sagrado chamado força interna feminina. Sóror quer dizer irmã. Sororidade é a capacidade que as mulheres possuem em se reconhecerem como irmãs. Estamos em um momento em que o divino feminino está retornando, está derrubando toda a escuridão e voltando à honra. Isso está no ar. Tem uma luz acendendo nos corações das mulheres, o chamado“. – Janaina Sarzi
Esse chamado nada mais é do que o reconhecimento e reverência da face feminina do divino em todas as coisas, inclusive nós mesmos, homens e mulheres.
Madre Terra Festival 2017| Camilla Albano
Gratidão a todas que contribuíram para a produção desse texto através de suas respostas. Alanita, Annes Zia, Ari, Bianca Meireles, Bianca Motta, Camilla Albano, Daniele Namorato, Diane Fernandez, Gezi, Ieda, Janaina Sarzi, Kimberly Dreher, Tilo Tilottama, Thaes Arruda e Anônima, vocês são incríveis, reverencio a cada uma, muito obrigada!
* Entrevistas completas: MulheresNoTrance
*Album completo do Madre Terra Festival 2017 aqui.
Mulheres Vivas
Mulheres Coloridas
Mulheres que cantam, dançam e gritam!
Mulheres Livres
Mulheres Despertas
Mulheres das mais Diversas
MULHERES!!!
Madre Terra Festival 2017| Camilla Albano
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Para se aprofundar mais na cosmovisão da nossa colunista Karla Amadei,
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– A dança enquanto elemento transcendente I, II e III – BioTrance
– Trance e Biodança: Movimentos de Transculturação – BioTrance
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