As viagens da consciência (Neuropsy): Ayahuasca (I)

></h2><h3>A <strong>poção</strong> célebre da <strong>Amazônia</strong></h3><p>Se estima que existem umas 450 espécies de plantas e cogumelos que podem ser definidos como <strong>psicoativos</strong>, dos quais cerca de 120 possuem <strong>propriedades alucinógenas</strong>.</p><p>Uma delas, é a <strong>ayahuasca  </strong>(também conhecida pelos nomes de caapi, daime, yajé, natema e hoasca), um <strong>piscoativo</strong> utilizado atualmente por mais de 70 grupos indígenas diferentes, espalhados pelo Brasil, Colômbia, Peru, Venezuela, Bolívia e Equador. </p><p>Entretanto, o Brasil é o único país a ter o uso da <strong>ayahuasca</strong> para fins religiosos amparado por lei desde 1986, a exemplo do que ocorre com o uso do <strong>peyote</strong> (<em>Lophophora williamsii</em>, um cacto que contém <strong>mescalina</strong>) pela<em> Native American Church</em> nos Estados Unidos.  A partir das décadas de 1920-1930, surgem no país três <i><b>religiões ayahuasqueiras</b>: </i><strong>Santo Daime</strong>, a <strong>Barquinha</strong> e a <strong>União do Vegetal</strong> (UDV) (Guimarães dos Santos, 2007; Riba <em>et al.</em>, 2001 <em>apud</em> Pires <em>et al.</em>, 2010).</p><p style=>Fonte: <strong><a href=Sacred Art

A palavra ayahuasca é originária da língua quéchua e quer dizer: “aya”pessoa, alma, espíritu morto;  “waska”corda, trepadeira, liana, cipó; logo, traduzindo-se para o português ficaria corda dos mortosou bemtrepadeira das almas.

Ela consiste, geralmente, na cocção de duas plantas: as cascas e caules da liana da família Malphighiaceae, Banisteriopsis caapi, junto com as folhas do arbusto da família Rubiaceae, Psycotria viridis. Porém, os taxônomos sugerem a existência de outras 98 espécies que podem ser adicionadas à ayahuasca. Por exemplo, as aminas psicoativas e seus análogos (bufotenina e 5-MeO-DMT) contidos na bebida, também são constituintes de rapés e chás preparados a partir de diferentes espécies vegetais que crescem em várias regiões da América. No sul, a substância pode ser extraída por exemplo de sementes de Anadenanthera peregina ou de cascas de caules de Virola spp., Piptadenia, Mimosa hostilis, Diplopterys cabrerana (syn. Banisteriopsis rusbyana) e Lespedeza bicolor. 

></p><h3> </h3><h3>Uma breve olhada ao <strong>sistema nervoso </strong></h3><p>Para compreender como funciona a <strong>ayahuasca</strong> no nosso corpo, é importante repassar alguns conceitos básicos sobre o <strong>sistema nervoso</strong>.</p><p>A unidade estrutural do <strong>sistema nervoso </strong>é o <strong>neurônio, </strong>um tipo de célula altamente estimulável que processa e transmite informação através de <strong>sinais eletro-químicos</strong>. Tipicamente, o <strong>neurônio</strong> possui o corpo celular e dois tipos de prolongamentos citoplasmáticos, as <strong>dendrites</strong> e os <strong>axônios</strong>. </p><p style=><em>Anatomia básica de um neurônio.</em></p><p>Quando a terminação do axônio de um <strong>neurônio</strong> estabelece ligações com as dendrites ou corpo celular de um outro<strong> neurônio</strong>, ou com <strong>células efetuadoras</strong> (células musculares/placas motoras e células glandulares), as membranas modificam-se e formam uma <strong>sinapse</strong>. A<strong> sinapse</strong> é o nome dado a esse ponto de encontro, um espaço ou junção especializado onde há transmissão dos <a href=potenciais de ação (uma onda de descarga elétrica que percorre a membrana do neurônio após um estímulo, que implica uma alteração rápida na polaridade da voltagem, de negativa para positiva e de volta para negativa) que “carregam” uma informação. Ou seja, a sinapse permite que o impulso nervoso seja conduzido de um neurônio para o seguinte. 

><em>Sinapse química.</em></p><p>Existem dois tipos de <strong>sinapse</strong>: a <strong>sinapse elétrica</strong> e a <strong>química.</strong> </p><p>As <strong>sinapses químicas</strong> podem ser excitatórias ou inibitórias e são caracterizadas por um <b>membrana pre-sináptica </b>(onde estão presentes as vesículas que contem os <strong>neurotransmissores</strong>) “em contato” com um <b>membrana pós<span style=sináptica (onde estão presentes os receptores para esses neurotransmissores) separados pela fenda sináptica, que é o espaço  anatômico no tecido nervoso que se observa entre um axônio e sua célula de conexão (Moreira, 2013).

Os neurotransmissores são biomoléculas produzidas pelos neurônios que atuam como mensageiros químicos.  Um deles é a serotonina (5-hidroxitriptamina ou 5-HT), conhecida como “o hormônio da felicidade”, e como tal,  serve para conduzir a transmissão de uma célula nervosa para outra. 

A serotonina tem efeito inibidor da conduta, juntamente a um efeito modulador geral da atividade psíquica. Assim, ela influi sobre quase todas as funções cerebrais e a variação na concentração dela está relacionadas a alterações de comportamento e humor, ansiedade, agressividade, depressão, atividade sexual, sono, fadiga, supressão de apetite, ritmo circadiano funções neuroendócrinas, temperatura corporal, na sensibilidade à dor, atividade motora e nas funções cognitivas (Feijo et al., 2010).

></p><h3> </h3><h3><strong>Bases bioquímicas </strong>da<strong> ayahuasca</strong>: a<strong> sinergia</strong> na <strong>Natureza</strong></h3><p>A combinação do caule com as folhas forma uma <strong>associação sinérgica</strong>, porque as substâncias contidas nelas tem roles farmacológicos complementários.</p><p>Por um lado, as <strong>Beta-carbolinas, </strong>os <a href=alcalóides mais importantes da B. caapi, como são a harmalina (HRL), harmina (HRM) e tetraidro-harmina (THH), são inibidoras da monoaminoxidase (MAO), uma enzima (um grupo delas, para ser mais exatos) que degrada neurotransmissores como serotonina, dopamina e noradrenalina (monoaminas). É bem provável que você já tenha ouvido falar das IMAO em outro contexto, já que pelo antes explicado, são fármacos com propriedades antidepressivas, que favorecem a permanência da serotonina na fenda sináptica do neurônio. Essas substâncias são os primeiros antidepressivos desenvolvidos, e tornaram a depressão um problema com tratamento médico (semelhante a outras doenças como a diabetes e a hipertensão arterial), a pesar de ser muito polêmicos, pela sua grande quantidade de efeitos colaterais e potencial citotoxicidade (ou seja, ser tóxica para as células).

Por outra parte, a P. viridis, contém a N,N-dimetiltriptamina (DMT), um potente alucinógeno, também metabolizada pela MAO. A DMT é uma substância presente em raízes, caules e folhas de diversas plantas. Sua estrutura é semelhante ao neurotransmissor serotonina e além de estar presente nas plantas, também se encontra em tecidos de mamíferos e anfíbios, entre outros Em humanos, está no sangue, urina e no fluido cérebro-espinhal, ou seja, é uma substância endógena

><img data-lazyloaded=MAO; porém a harmina e a harmalina, e em menor extensão, a tetraidro-harmina (as Beta-carbolinas da liana), são potentes inibidores da enzima MAO. Desta forma, as Beta-carbolinas impedem a degradação da DMT no trato gastrintestinal, possibilitando que o fármaco fique disponível para ser absorvido (Pires et al., 2010).

Para o chá, o tempo para início dos efeitos é de aproximadamente uma hora após a ingestão. Esses efeitos, que são menos intensos que os produzidos pela DMT parenteral ou fumada, duram aproximadamente quatro horas (Brito, 2004).

>Fonte:<strong><a href= The Clinic

A ayahuasca e o poder de resolução da imaginação

Os efeitos subjetivos da ayahuasca foram avaliados através da Escala de HRS (Hallucinogen Rating Scale), que permite medir níveis de alucinação. A duração desses efeitos foi coincidente com os níveis de alcalóides presentes no plasma, variando entre visualização de imagens coloridas com olhos fechados, modificação dos processos perceptivos, cognitivos e afetivos.

A ayahuasca muda radicalmente os sistemas de prazer e motivação, afetando o fluxo, organização e ancora da consciência. Sob o efeito da ayahuasca, a imaginação e a visão tem a mesma resolução

¿Como isso é possível? 

Segundo explica o neurocientista argentino Mariano Sigman (2017), durante a percepção, (quando vemos alguma coisa), a informação vai desde os olhos até o tálamo, depois passa ao córtex visual, até a formação de memórias e finalmente chega ao  córtex frontal.

Em contraste, com a ayahuasca, o córtex visual não se nutre dos olhos, senão do mundo interno. Durante a alucinação psicodélica, o circuito começa no córtex pré-frontal e dali se nutre da memória para fluir “contra-mão” até a córtex visual

A transformação química do cérebro consegue (por mecanismos ainda desconhecidos) projetar a memória na córtex visual, como se fossem reconstrutoras da experiência sensorial que deu lugar a essas memórias! 

></strong><img data-lazyloaded=Áreas funcionais do córtex cerebral. 

De fato, sob efeito da ayahuasca, o córtex visual se ativa praticamente com a mesma intensidade vendo uma coisa do mundo material que imaginando-a, enquanto que sem a droga, o córtex visual se ativa muito mais ao ver que ao imaginar.

Por fim, a ayahuasca também ativa a Área Dez de Brodman, encarregada de formar uma ponte entre o mundo externo (o da percepção) e o do mundo interno (o da imaginação).  Assim, a fronteira entre o mundo externo e o interno fica muito sutil, daí que muitas pessoas dizem se sentir “fora do corpo”.

>Imagem: <strong>Symbolika</strong></p><h3> </h3><h3>A <strong>ayahuasca</strong> e <strong>ciência</strong>: novos abordagens para velhos problemas</h3><p>Do ponto de vista terapêutico, há indícios de que o aumento nos transportadores de <strong>serotonina,</strong> e possivelmente a modulação da expressão dos genes das proteínas transportadoras de<strong> serotonina</strong>, possam ser um caminho para novas abordagens a partir das substâncias presentes na <strong>ayahuasca</strong>, para reverter quadros de alcoolismo, associado a comportamentos violentos, dependência à cocaína, depressão, comportamento suicida e estres post-traumático, entre outros. </p><p style=Você pode saber mais sobre ayahuasca e o estado atual dos paradigmas da ciência com psicoativos na próxima edição de NeuropsyViagens da Consciência Ayahuasca (II)

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Marambá: um zoom na experiência piscodélica das high bpm

Bibliografia consultada:

Brito, G.S. 2004. Farmacologia humana da hoasca (chá preparado de plantas alucinógenas usado em contexto ritual no Brasil). Em: Labate BC. O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado de Letras Edições e Livraria,  p.623-71.

Feijo, M.F., Bertoluci & C.M, Reis, C. 2010. Serotonina e controle hipotalâmico da fome: uma revisão. Programa de Pós-Graduação em Medicina: Ciências Médicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Serviço de Medicina Interna do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Porto Alegre, RS.

Guimarães dos Santos, R. 2007. Ayahuasca: neuroquímica e farmacologia. Revista eletrônica Saúde Mental, Álcool e Drogas. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drogv3, n°1, versão on-line.

Medicina Explicada (Web). Sinapses. Disponível on-line.

Moreira, C. 2013. Neurónio. Revista de Ciência Elementar, 1(01):0006.

Pires, A.P.S, Oliveira, C.D.R. & Yonamine, M. 2010. Ayahuasca: uma revisão dos aspectos farmacológicos e toxicológicos. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica e Aplicada, 31(1), p.15–23.

Sigman, M. 2017. La vida secreta de la mente. 8ª edição. Debate. Buenos Aires, Argentina, p.186-188.