A armadilha do Trance

Não estou aqui para julgar a produção do Atmosphere Festival 2017, só eles sabem os detalhes e entendem o que foi uma fatalidade inevitável e o que poderia ter sido melhor planejado. Mas quero aproveitar o momento triste para deixar alguns pensamentos sobre a cena:

O Trance cresce e com ele seu público. Para nos atender, se multiplicam festivais, pvts, produtorxs, djs, vjs, fotógrafxs, e o desafio vai ficando cada vez mais visível. Com a pluralidade e a massividade quase inexorável, a cena explode de arte e opções de altíssima qualidade, mas também a estatística acaba nos atingindo e com ela, chegam as noticias tristes e as tragédias.

A proposta dos festivais de Trance exige uma logística muito específica e particular que não se estuda em lugar nenhum. Quem formou a cena que hoje você disfruta no Brasil, aprendeu fazendo errado e fazendo certo, na montanha, na praia, na cachoeira, na chuva e na lama; muitas vezes de graça, tomado perjuízio e até pagando para trabalhar, como muitxs já relataram em diversos posts que podem ser lidos aqui no portal (exemplos: Surya Ecoart, Nanhderu Artes)

Enquanto o mundo cai “lá fora”, dentro do Trance tudo parece possível: uma infraestrutura mais louca que a outra, um pico mais isolado e sinistro que o outro, uma galera que nos acolhe com amor, que parece ter crescido por fora dos preconceitos que nos enfraquecem como sociedade. E assim, pecamos de arrogantes inúmeras vezes enquanto achamos que estamos sendo “iluminados” e “good vibes” pois depois de todo, nós que ouvimos aquele set que a maioria das pessoas acham absurdo; nós que acampamos num lugar remoto onde a galera nem tem coraje de ir e ainda resistimos por vários dias todo tipo de inclemencias climáticas; nós que levamos nos pulsos as fitas de pano dos festivais como medalhas de guerra pois somos amantes do perrengue e da aventura; nós que conhecemos todas as substancias (e a elite delas) pela busca, – tantas vezes cega -, da experiência psicodelica/espiritual.

Mas na prática, apenas somos seres com ideias incrívelmente complexas e extravagantes que tentam disfarçar a sua condição mortal. E por isso, nos devemos o questionamento continuo dessas ideias, para saber se estamos fazendo certo, para que isso aqui não vire só um negócio, para não nos colocar em risco, para poder continuar nos superando.

Somos xs primeirxs em reclamar quando um evento é suspendido por tempo ruim e exigir que a festa role mesmo quando é óbvio que falta estrutura. Assim como da muita raiva ver uma quantidade ridícula de produtorxs/crews prontas para cobrar os ingressos, mas sem planos B, C e D quando o evento ocorre durante tempestades ou em picos isolados, com comunicação deficiente com o centro urbano mais próximo. O “plano A” falha e o festival fica um caos. E aí a armadilha dos trancers: a relação amor-ódio com o caos. Se queremos prezar pela integridade e valores da nossa cena, precisamos REFLETIR seriamente para DECIDIR o rumo dessa história toda.

Esse movimento é o que restou do “underground” da música eletrónica, e não merece aparecer na capa dos jornais porque uns poucos não respeitam os limites próprios ou alheios. Nessa linha, temos visto alguns festivais sumirem, trocar de locação e data, fazer propostas menos megalomaníacas, aceitando que a Natureza pode bem mais que a nossa inexperiência e ineficiência pretendendo enfrentar ela.

Vamos usar essa ansiedade e empolgação que nos caracteriza para tentar estar sempre um passo na frente, pensando em todas as possibilidades, reforçando o nosso cuidado e o do próximo. Assumir a nossa limitação não é um atentado contra a nossa criatividade ou poder de realização, pelo contrário, é a alavanca deles.

Sinceras condolências para todos os familiares e amigxs do DJ Kaleb Freitas e desejos de pronta recuperação para xs feridxs.

Trance é família.

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A melhor forma de eternizar um artista é redescubrindo a sua arte:
Soundcloud do Kaleb

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