O Trance resiste na Aldeia Outro Mundo

Sabe quando o som nos toca e nos transporta para outras dimensões. Quando fechamos os olhos, socamos nossos pés no chão e dançamos numa luta interna desbravando em êxtase uma aventura sonora capaz de expandir nossas mentes e nos conectar com a dança sagrada do Universo? Fazia 3 anos que eu não me conectava ao Trance. E quem vê de fora uma pessoa ou uma multidão dançando em transe não compreende o poder do Trance.

“Como podem ficar dias nesse som repetitivo? Será efeito das drogas?” Essa é uma pergunta que ouço muito. Isso porque infelizmente os rituais de Trance, como são algumas específicas festas e festivais, que nada tem haver com raves, ainda sofrem enorme preconceito até de quem já viveu um, mas viveu a parte mais superficial, não se permitindo ir além do mainfloor e dos brinquedos sintéticos.

O Trance mudou a minha vida desde que o conheci um pouco antes da virada do milênio. São 2 décadas de vivência. Moldou a minha personalidade. Foram muitas as experiências e ensinamentos, como aprender a respeitar os meus limites, entender os meus processos, viver em comunidade, respeitar a natureza. E o mesmo aconteceu com milhares de pessoas que resolveram se entregar ao mundo Trance.

Conheço inúmeras histórias de pessoas que largaram toda a sua vida com papéis sociais caretas e a partir da experiência Trance se conectaram com um outro eu, com sua verdadeira essência, desejos e redefinirão toda a sua vida. O Trance transforma para melhor. Não é só um som, um DJ, uma festa, um festival, é um autêntico chamado a revolução individual e coletiva. É preciso se conectar com o outro, sair da zona de conforto e reaprender a viver em comunidade.

Após viver 10 anos de Universo Paralello, o maior festival da América Latina voltado a arte e cultura alternativa, que acontece na virada do ano na Bahia, esse ano eu pude passar 10 dias dentro do festival ReveillOz, um festival alternativo poderoso, que acontece também na virada do ano só que em Lagoinha, interior de São Paulo, com uma pista dedicada ao Trance Psicodélico que não desliga durante todo o festival, se tornando um organismo vivo e pulsante, instigando a dança e os sentidos, fora uma pista secundária que é o chill out e demais ambientes e estruturas que vou relatar melhor abaixo.

Primeiro devo falar do espaço físico em que é realizado o festival. Um espaço chamado de Aldeia Outro Mundo, que dizem os místicos, se situa na 5° dimensão. Um território liderado por Dêfo, um homem que trabalhou a maior parte da vida como educador, com crianças e que a vida levou em algum momento para o Trance, se tornando um grande produtor do meio por se aliar aos melhores produtores e artistas da cena.

O local da Aldeia Outro Mundo foi comprado inicialmente para ser uma ecovila, abrigando famílias, amigos, cursos de bioconstrução entre outros, tudo dentro da filosofia nova era. De portas abertas, começou a receber participantes que passavam finais de semana vivendo ali uma vida calma, com cursos e conectados a natureza. Logo o imenso sítio passou a sediar festas e mais tarde festivais, reunindo hoje as melhores crews de São Paulo.

Para isso, o sítio passou por enormes transformações, como o mainfloor, que foi construído onde antes existia um morro, que foi arrancado (o Trance move montanhas..rs.. ) e ali, como se dentro de um vale, foi construído um sistema que permite uma acústica excelente sem incomodar os vizinhos de outros sítios e principalmente os animais que ali residem, já que o sítio é também um local onde animais silvestres são ressocializados e soltos na natureza.

Diferente do Universo Paralello e outros festivais, lá não tem praia, cachoeira, rio, nenhuma dessas belezas naturais, e isso me incomodou no início pois estamos no verão e o sol não costuma dar descanso. Mas logo isso é superado com as fotos, vídeos e informações que o festival nos oferece antes de chegar lá.

O local tem uma vista maravilhosa, uma energia incrível, tem um laguinho com peixes onde você pode se refrescar, sombras e chuveiros no mainfloor. Fora que o clima não se compara a Bahia, é menos quente e assim que o sol vai embora, o friozinho chega proporcionando um clima refrigerado, galera de casaco dançando na pista, uma delícia. Novamente a estrutura faz toda a diferença.

Na Aldeia Outro Mundo, os banheiros são de alvenaria e sempre muito limpos. As duchas são outro destaque. São individuais, quente ou fria. É um luxo poder tomar banho quente pelado sem perder a privacidade já que a maioria dos outros festivais são sempre banheiros coletivos, com água fria e duvidosa. Os seguranças, o pessoal da limpeza, dos bares e praça de alimentação são super simpáticos, educados e sorridentes. Todos trabalham com gosto e amor.

O festival ainda conta com bares no mainfloor, no chill out, lanchonetes e área de alimentação, além de um mercadinho com preços de loja de conveniência. Tudo é pago com um cartão que você compra por r$ 5, recarrega com o valor que você quiser e pronto. O produto mais procurado da festa é de graça.

A água, essêncial pra vida e bem estar dos participantes vem de um poço especial com água potável certificada por um laboratório para consumo. Quem quiser levar sua comida, ou comprar no mercado, pode cozinhar e preparar seus alimentos na cozinha comunitária que oferece lenha de graça para o uso. Outra iniciativa fantástica desse festival é que ele conta com uma robusta horta onde você pode colher direto da terra o que for consumir, como alface, tomate, couve e etc. O público não passa perrengue de comida, com opções fastfood, comida tradicional com arroz, feijão e carne, além de opções veganas e vegetarianas.

Um dos espaços mais legais fica por conta da Tenda de Cura, local dedicado a vivências como yoga, tai chi chuan, meditação, reiki, rapé e dezenas de outras atividades que reequilibram as energias do corpo e do espírito. Aqui fica o pulmão do festival e quem não conhecer esse espaço sai do festival sem conhecer seu verdadeiro espírito.

Era delicioso poder acordar e fazer uma série de meditação, yoga, tai chi chuan e depois, com as energias renovadas ir curtir um Trance no mainfloor. Ainda rolou pela primeira vez a Tenda Vermelha, dedicada às mulheres, ao Sagrado Feminino, com vivências específicas para o empoderamento delas.

Durante um festival você tem a oportunidade de se desconectar da sua vida na cidade e passar a viver num ritmo mais sereno, sem relógio ou celular nos dizendo o que fazer. Você se conecta a rede do ambiente, ao som, a sorrisos, olhares, gestos, performances e quando você vê está fazendo novos amigos que você leva para o resto da vida.

O ReveillOz é um festival família. Vi muitas crianças, idosos, grávidas, casais gays, todos curtindo tudo numa boa. Durante os 10 dias não se viu uma briga se quer. O respeito era soberano. Não existia lixo no chão, o público em sua maioria era civilizado e usava corretamente as lixeiras proporcionando um ambiente limpo e agradável.

Mas infelizmente nem tudo são flores. Um festival com água de graça é para ser louvado. Vários festivais fora do país oferecem água de graça. Porém aqui não deu muito certo. Parte pequena do público, que devo dizer é em sua maioria um público que merece palmas, usou a água potável para lavar todo tipo de coisa, tomar banho de gato e desperdiçaram muito desse líquido vital ao ponto do cantinho chamado de HidrataOz ter que ser fechado por um dia inteiro, onde a produção teve que comprar caminhões pipa para voltar a funcionar. Lembrando que em toda área do festival existem torneiras com água não potável a vontade para se lavar e lavar coisas. O abuso do HidrataOz foi lamentável e agora durante um tempo indeterminado as festas e festivais que acontecem nesse lugar mágico que é a Aldeia Outro Mundo não terá mais água de graça. De toda forma, a produção é muito honesta e cobra r$ 4 por garrafinha de água sempre gelada.

Outro ponto que vai estar fechado nas próximas edições é o mercadinho que foi acusado de praticar preços muito altos, o que não é verdade. É preciso lembrar que tudo dentro da Aldeia foi construído do zero. Tudo teve custos e tudo foi pensado para o bem estar dos participantes. É estrutura, logística, pessoal, transporte, tudo isso vai refletir nos preços. Ter um mercado na porta da sua barraca de camping vendendo toddynho gelado, bandejinha de queijo e presunto fresco, pão de forma, requeijão, frutas, sucos, tudo fresquinho para proporcionar um lanche de qualidade é uma iniciativa que deveria ser aplaudida. Não é possível que exista alguém tão desinformado ou ingênuo que não sabe que o preço desses bens de consumo obviamente não podem ser o mesmo praticado na cidade. O mercadinho oferecia a opção mais barata para se alimentar dentro do festival e ainda assim, por uma minoria mimada foi criticado de forma infundada e por isso está fechado por tempo indeterminado. É uma pena, mas só assim para o público aprender a dar valor.

Não vou falar das atrações musicais pois foram muitas, 10 dias de música sem parar, seria injusto eu citar só algumas apresentações. Teve muita psicodelia raiz, muitos momentos de dançar como se ninguém estivesse te olhando. Foram dias e noites incríveis que nem a chuva com ventos de 70km pode interromper.

A família Aldeia Outro Mundo só se fortaleceu e entrou 2020 com glória, sorrisos, abraços, palmas, paz, amor, unidade e respeito.

Viva o ReveillOz, viva a todos que criaram e participaram dessa celebração encantadora. Num mundo cada vez mais desigual, intolerante e hostil, um festival como esse é um oásis, um ensinamento, uma vivência inspiradora e transformadora. Gratidão por tudo que vivi!

Ahooo! 🙏

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